O grotesco universo de Ghelderode e a
experiência estética do estranhamento no espetáculo
O estranho cavaleiro
Natasha Centenaro
Crédito da Imagem: Jefferson Botega
A experiência estética de entrar em contato com o estranho pode passar longe de ser uma sensação agradável. Para Sigmund Freud, a experiência do estranhamento está associada à experiência emocional complexa de se passar por uma situação anteriormente familiar e que se transforma em algo assustador, estranho, espantoso, e pode suscitar diversas reações, principalmente de terror, e, inclusive, de comicidade. Outro aspecto do unheimliche (estranho) diz respeito à duplicidade. A duplicidade se mostra no fato de que essa vivência, apoiada no sentimento de medo, também pode se manifestar no riso cômico, por si só, dualístico. O riso seria um mecanismo antecipado de refúgio frente ao terror. E não há nada mais familiar, ao mesmo tempo, e, por isso, de tão próxima, mais temerosa do que a morte. Assim como, não há figura mais esquisita, grotesca e estranha do que o bufão, que tanto provoca o riso.
No caso do espetáculo O estranho cavaleiro, a experiência estética se revela não apenas familiar, como desperta uma mescla de sentimentos, desde esse estranho do suspense, até o estranho do riso, passando pelo estranho da inquietação e do questionamento, para chegar ao estranho agradável e prazeroso. Impressões desconcertantes que começam antes mesmo de se acomodar na plateia do Teatro de Arena. No hall, a iluminação cênica realça a esquisitice de manequins com figurinos excêntricos (aquele turbante saudoso), tules e panos pretos, fotografias, desenhos, gravuras, imagens, textos, de bufões, características do período medieval e outros detalhes cuidadosamente dispostos nas colunas, nos bancos e balcão, tudo para indicar as paixões de Michel de Ghelderode. Para adentrar nesse universo grotesco e absurdo do autor do sainete (peça curta de um ato, de caráter cômico ou burlesco, dentre os expoentes destacam-se Cervantes e Calderón de La Barca, como bem explica o programa distribuído ao público). Descobrimos um texto de 1920, repleto de imagens alegóricas, frases metafóricas e um tema atemporal, de um dramaturgo belga pouco conhecido e encenado no Brasil.
Se a pergunta, no início, foi: será que a peça começa aqui, no hall, com alguma intervenção? A resposta vem com as vozes ecoando dentro do teatro e ouvidas de fora. A presença dos seis atores em cena, enquanto os espectadores entram, mobiliza olhares e atenção. Tente, você também, desvendar os intérpretes (irreconhecíveis) por trás do primoroso figurino (ponto alto) de Rô Cortinhas e da maquiagem e caracterização impecável daqueles centenários bufões medievais. O palco do Arena (despido de qualquer cenário ou objeto cênico, a gaita só aparece no decorrer do baile) se estende e avança para algumas fileiras de assentos, onde transitam, com dificuldade, seis velhos deformados, feios, sujos, fedidos, entrevados, enfermos, atrofiados. O lugar é um asilo, hospital, hospício, um depósito de gente que já não serve mais à sociedade.
Esse espetáculo é resultado do Prêmio de Incentivo à Pesquisa em Artes Cênicas do Teatro de Arena no ano de 2013, realizado pela Secretaria de Estado da Cultura. Como pesquisa, a Satori Associação Teatral buscou na imersão desse universo ghelderodeano, concentrando-se na figura dos bufões, desde a linguagem oral, corporal, gestual, tudo representava o grotesco, das cuspidas de cascas de maçã (ou laranja), dos palavrões repetidos, das vozes e pantomimas estilizadas, do fazer rir pelo estranho. A peça é a efetivação, a execução desse longo período de pesquisa (desde 2012), sobretudo, um produto bem feito.
Impressiona o contraste da experiência com a jovialidade do elenco, e aí está uma reunião certeira. Quando se pensa na maturidade de cena de Liane Venturella e Luiz Antônio Santos, frente aos “novatos”, porém seguros e corajosos, Alexandre Borin, Carolina Diemer, Daniel Fraga e Franciele Aguiar. Essa troca acontece de forma natural e todos estão na mesma nau de loucos, dementes bufões, com perna quebrada, corcunda, sem braço, mãos aleijadas. Destaca-se o trabalho de preparação física e vocal. Nesse espetáculo se faz evidente o trabalho apurado e construído em cima de tipos específicos, que, desde o corpo, causam o riso, e tudo que envolve esse corpóreo também: a muleta, a dor, a falta de visão ou audição, a trapalhada do choque entre eles. Ressaltados pelo figurino e a caraterização (imprescindíveis). E não só o corpo, mas as faces apavoradas diante dos sinos e da presença-ausência do cavaleiro que ronda os muros do asilo. O olhar do vigia ao descrever o cavaleiro e seu cavalo, ou sua sombra, mostra ao público o irrevelável e inquieta. Depois, o olhar do anúncio, o mesmo olhar descritivo, revelador, e nada é visto. Os olhares estranhos de Franciele Aguiar, na primeira cena aqui comentada, e de Liane Venturella, ao final, são diretamente iluminados pelos refletores (a iluminação: outra qualidade) e provocam sensações ameaçadoras, comovem pelo temor. O temor da aproximação (ou afastamento – alívio disfarçado) do cavaleiro.
E quem é esse cavaleiro por que esperam os bufões? A semelhança com o impacto da não-presença de Godot é imediata. Não é à toa, Ghelderode é um dos precursores do Teatro do Absurdo e o diálogo com Samuel Beckett, Eugène Ionesco, e também com Antonin Artaud, ficam claros ao longo dos diálogos (silêncios) da peça. Como em Esperando Godot, ri-se do absurdo da situação. Porém, o riso é seco, engasgado, entrecortado. Ri-se abertamente, de forma solta e desprendida, com os bufões que gargalham da vida, e esperam a morte. Em cada gargalhada, ecoa o silêncio, o vazio, o intervalo do não-dito, o medo. É uma peça de riso frouxo, quando o motivo do riso se faz incômodo e estranho a todos, quem ri e quem causa o riso. Os bufões riem um da cara do outro, gozam da morte que não chega, mas sabem que vem vindo, cedo ou tarde, riem, e em cada riso está contido o seu silêncio. Engana-se quem pensa que é só diversão. A ironia, o deboche, o sarcasmo, estão em cada palavra, na crítica às instituições (aos poderes políticos, as instâncias militares, à igreja – a religiosidade que cega), às relações hipócritas da sociedade. A crítica (se arma no silêncio) é o eco do riso. Impossível também não pensar e lembrar-se da peça Heróis – o caminho do vento, do francês Gerald Sibleyras, cujo enredo traz três velhos combatentes de guerra que também estão no asilo e se encontram, todos os dias, no terraço, para conversar e fazer da espera da morte um irônico passatempo.
Se a Satori declarou que a tarefa complexa de montar O estranho cavaleiro seria impossível e estaria fadada ao erro, entendo que foi o mal-entendido mais frutífero do que a própria companhia planejou. O público não só se diverte como se estranha, inquieta e absorve as imagens grotescas de Ghelderode. Talvez, uma ou outra frase do texto possa não ser plenamente compreendida, fato de a linguagem carregar metáforas e alegorias. Entretanto, o conteúdo da fábula é tão entendido como se percebe nos comentários pós-espetáculo. O risco de trazer e aproximar este autor da cena porto-alegrense valeu e muito as penas da Satori e, especialmente, de Irion Nolasco. O diretor conduz como maestro sua orquestra de bufões e na medida, em 45 minutos, consegue transpor a experiência estética do estranhamento, por meio do riso, do silêncio, do medo, da corporificação e presentificação do estranho. O estranho familiar, o que está entre nós.
Palmas para a equipe técnica, pelo espetáculo. Ainda mais palmas ao Irion Nolasco e ao Daniel Fraga (assistente de direção) e a todos do elenco pela ousadia e a coragem de enfrentar o risco. Sabiamente enfrentado, sabidamente burlado.
Ouço sinos. Será o cavaleiro a espreitar-nos?
A morte chega para todos. Para uns, parece mais perto. Descubra de quem ela está ao lado, assistindo a O estranho cavaleiro.
* Natasha Centenaro é mestranda em Letras, área de concentração: Escrita Criativa, da PUCRS, jornalista e escritora.